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'42/2 - A revolução marroquina

A ditadura no Egipto já tinha sido derrubada pelo golpe de estado laico e a guerra civil nos Estados Unidos estava a acontecer. Houve uma grande escalada de tensão entre os governos de Marrocos e da Argélia e os governos estavam a mobilizar forças armadas para uma guerra que seria fratricida e completamente estúpida.

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9 Novembro 2023

- Fatima, desculpa, caiu a chamada! Estávamos a falar de quando começaste a envolver-te mais a sério em política. 

- Eu percebi, é normal, não tem problema. 

- Falávamos de quando tiveste de abandonar o país, não deve ter sido fácil?

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- Continuei a fazer o trabalho de contacto com movimentos políticos climáticos de vários países na Europa. Havia exilados como eu, mantínhamo-nos em contacto e até fazíamos muita da comunicação das pessoas que tinham ficado em Marrocos, as presas e as clandestinas.

- Foi nessa altura que nos conhecemos, é verdade.

- Sim, fiquei em tua casa 10 meses, com os teus pais, os meus queridos amigos António e Marta. O António também estava envolvido no Mundo Novo…

- Podes explicar melhor o que era o Mundo Novo?

- Era uma coligação de sindicatos, académicos e movimentos pela justiça climática. Era uma plataforma que construía planos de transformação ecosocial para os diferentes países, e foi através dos contactos do Mundo Novo que fiquei convosco.

- Era uma coisa mais técnica?

- O Mundo Novo começou por ser um pouco académico, mas foi-se tornando cada vez mais político. Quando surgiu, falávamos principalmente de energia e transportes, e dos impactos da crise climática para quem trabalhava nesses setores. Mas evoluiu rapidamente. Expandiu-se a todas as outras atividades da sociedade e começou a organizar grandes manifestações, no meio das crises financeiras e das guerras. Tornou-se numa espécie de grande aliança progressista. Mas havia sempre muita resistência à ideia de se tornar um partido político eleitoral.  E assim ficou, sempre neste modelo com aliança política e componente técnica.

- Mais tarde foi o Mundo Novo que escreveu a Rota do Futuro, não foi? Quando começaram as grandes migrações.

- Sim. A Rota do Futuro foi um documento maravilhoso que criou as bases para a distribuição de mais de 500 milhões de refugiados climáticos em todo o mundo ao longo de 15 anos pelos países onde havia condições de recepção. Através das Caravanas pelo Futuro movimentámos milhões de pessoas, em deslocações de grupos com centenas de milhares de pessoas dos seus locais de fuga até aos seus destinos finais.

- Conta-me isso melhor - nunca tinha acontecido um movimento de refugiados bem organizado pelo mundo todo, pois não? 

- Eu participei em sete caravanas, ao longo de quatro anos. A mais longa das deslocações que fizemos foi do Paquistão até à Alemanha. Outras foram mais curtas, mas logisticamente muito complexas, como da Indonésia à China, com ferrys e barcos. Deslocávamos quase cidades inteiras, que passavam meses em movimento. Era preciso segurança, saúde, alimentação, logística e outras coisas. Criámos enormes processos partilhados para conseguir levar cada caravana até ao fim.

- Não eram processos nada simples, imagino.  

- Não. Nos primeiros anos, as coisas eram muito complicadas. Tínhamos que proteger as caravanas de ataques da Máfia, das milícias, às vezes até das populações. Na Europa, mas não só… Mas foram melhorando com o tempo. Também fomos aprendendo e o sentimento em relação ao processo migratório foi mudando, porque era cada vez mais gente de todos os sítios, e mesmo dentro dos países havia grandes mudanças, com regiões dos países a tornarem-se inabitáveis e muitas migrações internas. As chegadas e os festivais de recepção eram maravilhosos, alegria pura. Era épico. Comecei a sentir que uma nova ideia de Humanidade estava ali. Ou uma ideia antiga, dos viajantes e dos hóspedes de braços abertos, que se vinha esbatendo há muito tempo. Foi quando comecei a sentir que me podia finalmente afastar e descansar.

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- Mas isto já é depois da Revolução Marroquina, não é? E essa foi já uma revolução causada ou iniciada pela crise climática… 

- A revolução foi em 2028. Queres que eu fale sobre ela?

- Acho que é importante, sim.

- Bem, não é possível explicar apenas com Marrocos. As grandes ondas de calor antes já tinham feito abanar tudo na Europa, nos Estados Unidos e na Ásia, até o movimento ecomunista já tinha sido fundado e anunciado publicamente. Eu já estava no movimento, como a tua mãe. Mas eu não pertencia à facção armada. 

- A minha mãe pertencia a uma facção armada?!

- Sim, a Marta era dirigente do Exército Verde. Ela tinha experiência por ter estado antes nas grandes ações de sabotagem. Tinha pertencido à ORCA ou à Descarbonária, não tenho a certeza qual. Ela não falava nisso. O passado dela era um pouco obscuro, não sei dizer com certeza…

- Eu não sabia nada disso. Como é que eu posso saber mais? Com quem posso falar?

- Eu acho que o Gianrocco podia falar-te nisso. Sabes quem é? O Gianrocco Fratin?

- Não. 

- Ele conhecia os teus pais, era contacto deles no movimento. É Comissário da Energia em Florença. Posso pôr-vos em contacto.

- Obrigado. E ele também era do Exército Verde?

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- Não, era das equipas de informação e um dos responsáveis por articulações com a guerrilha e com outros grupos, por isso conhecia muita gente. Ficou sempre muito ativo, aliás ainda é hoje. É mais novo que eu. Também é um bom contacto porque sabe muito mais do que eu sobre o que se passou na Europa, esteve sempre envolvido nas grandes decisões. 

- Obrigado, Fatima. Podes contar-me então sobre a revolução aí em Marrocos?

- A ditadura de Sisi no Egipto já tinha sido derrubada pelo golpe de estado laico e a guerra civil nos Estados Unidos estava a acontecer. Houve uma grande escalada de tensão entre os governos de Marrocos e da Argélia e os governos estavam a mobilizar forças armadas para uma guerra - que seria fratricida e completamente estúpida. A exportação de gás para a Europa tinha parado totalmente e havia tensão com a chegada de refugiados climáticos do lado do Sahara, e em particular nos territórios do Sahara Ocidental, e a confusão na zona da Palestina.

- E conseguiram parar a escalada da guerra?

- Em Marrocos fizemos uma grande aliança progressista (nós éramos uma parte importante da aliança) e derrubámos a Monarquia praticamente sem violência. As grandes mobilizações fizeram recuar o regime, que abandonou o poder em descrédito.

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- E na Argélia?

- Na Argélia o movimento avançou sozinho e falhou. Mas apesar disso, as tensões entre os dois países desescalaram e, porque nós éramos governo aqui, eles não mataram os nossos companheiros lá, alguns até foram exilados para Marrocos. No fundo, acho que mesmo as elites argelinas não queriam um conflito aberto.

- E o que mudou com a revolução?

- Conseguimos fazer um programa de transformação parcial, coletivizamos a água e a energia e começámos uma reforma rural. Estávamos demasiado dependentes de agricultura vinda de fora para continuarmos a aguentar choques de fome. E por incrível que pareça, funcionou! Começámos uma grande transformação na organização da produção, da distribuição e da alimentação, para responder às necessidades das pessoas. A Sul, o movimento participou em levantamentos e revoluções na Nigéria, em Angola e na Namíbia, e estava a governar em alianças. Mas depois aconteceu a Assembleia Sangrenta e, a nível internacional, nós, os ecomunistas, fomos reprimidos na maior parte dos outros países. Foi nessa altura que os teus pais foram presos. Sabes do que estou a falar?

- Sei.

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- Ouve, Alexandre, eu canso-me muito rápido e rebuscar estas coisas todas do passado está a stressar-me um pouco. Vou-te pedir para pararmos por hoje. 

- Claro, Fatima. Como preferires. Podemos falar outro dia?

- Sim, acho que sim. Mas da próxima vez traz a criança, que eu gostava muito de vê-lo. Como está a tua companheira?

- Muito bem.

- Trá-la também para eu vê-la. Vocês estão felizes? 

- Estamos muito felizes. 

- Ainda bem. Sobre a questão da Assembleia Sangrenta, quem pode explicar-te essa confusão bem é o Gianrocco. Eu envio-te o contacto dele. E também do Sukumar.

- Já tenho o do Sukumar, Fatima. Vou falar com ele nas próximas semanas.

- Manda-lhe um forte abraço e diz-lhe que me envie o seu último livro, que ainda não recebi.

- Digo. Queres marcar já a data para falar?

- Agora não tenho a agenda, Alex. Fazemos um plano nos próximos dias. Foi muito bom ver-te, saber que estás uma pessoa feliz, bonita, curiosa. Os teus pais ficariam muito felizes, Alex, por saberem que também queres saber o que eles fizeram, o que eles arriscaram. Eu estou muito feliz por falar contigo. Um beijo, meu querido. Shukran.

- Adeus, Fatima.

Não voltei a falar com a Fatima. Ela foi internada uns dias depois e morreu com cancro do pulmão passadas duas semanas. Antes de morrer, ela enviou-me um email com alguns contactos, entre eles o do Gianrocco Fatin e do Pepe Infante.

 

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