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'42/6 - 1.8 e a revolta da Inteligência Artificial

A Inteligência Artificial percebeu durante as ondas de calor que também estava sob ameaça de existência por causa da crise climática. As elites não se arriscam mais. A IA, de uma maneira ou outra, ia acabar com o seu domínio e isso eles nunca aceitariam. Acho que a internet nunca mais vai voltar a existir como até aqui.

14 Dezembro 2023

Acordei cedo, e ainda antes da 1h comecei a preparar o pequeno almoço. Tínhamos um pouco de café da ilha de São Jorge, coisa rara. Li algures que nos próximos anos vai haver mais café. As cheias no Brasil e na Colômbia e a seca na Índia interromperam quase totalmente o comércio nos últimos quatro anos, mas entretanto fomo-nos habituando a alternativas que já existiam como o chá preto ou a chicória. Não é a mesma coisa, mas dá para ficar mais desperto pela manhã.

Há alguns anos que não temos crises alimentares e fomes globais como as que houve no passado, mas há várias coisas a que estávamos habituados que simplesmente desapareceram. Felizmente há outras coisas novas no seu lugar. Como o meu pai me dizia, “agora é menos igual, o que comemos”. Quando faltou o café, muita gente teve de deixar de tomar de um dia para o outro. Só estava disponível no mercado negro. Eu lembro-me bem de ter dores de cabeça durante umas duas semanas e andar sempre cansado quando desapareceu o café pela primeira vez. Tinha muitas pessoas amigas na mesma situação, mas tivemos que lidar com essa realidade. Tudo isto eram problemas relativos, claro.

Se o vício do café acabou por se resolver em pouco tempo, as falhas nas drogas (legais e ilegais) foi muito mais grave e com consequências muito piores. Levou muita gente ao desespero e a procurar substitutos muito piores, sendo mais uma importante causa de morte.

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horta

A Lia acordou e ajudou-me com o resto do pequeno almoço: papas de aveia que tinham ficado de véspera e torradas com azeite. Enquanto comíamos, ela fez-me a lista das coisas para apanhar na horta: batata-doce, amoras, pêssegos, melão, brócolos, cogumelos, quiabo, manjericão, salsa e mizuna. A nossa horta de Santa Apolónia já tem mais de dez anos e ocupa o que eram os jardins do Museu da Água e da Biblioteca de Santos-o-Novo. A vala da ribeira de Santo António corta a meio a nossa horta, correndo com água no Inverno e geralmente seca nos cinco meses do Verão. A ribeira foi destapada há meia dúzia anos, para tentar reduzir as cheias que atormentaram Lisboa quase anualmente durante uma década.

- Duvido que isto esteja tudo disponível, Lia.

Queria dedicar o dia a continuar a vasculhar as caixas do meu pai e ia buscar estas coisas à horta pelas 12 da tarde, quando o sol já não estivesse muito forte, mas a Lia insiste em que eu vá ainda antes das 3, porque quer usar legumes para o almoço. E lá vou. Apesar de ser cedo (ainda nem são 2 horas da manhã) já está bastante calor: trouxe o meu chapéu de abas largas. Com as abas de linho recolhidas em cima, ponho-me a caminho. À entrada, numa espécie de acampamento improvisado no meio de filas e filas de vegetais, o gigante sinal à entrada:

“Este campo pertence às pessoas que vivem em Lisboa. Juntas, cidadãs, profissionais, amadores e livres, experimentamos uma transição ecológica, democrática, social, relacional e económica para o novo mundo que estamos a criar para os povos e a humanidade do futuro. Inscreve-te para participares. Colhemos o que semeamos.” Estava traduzido em várias outras línguas por baixo.

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Governo francês

Ao lado, um quadro com os nomes dos vegetais, as épocas de colheita e a disponibilidade. Um rapaz aproxima-se de mim e pede-me o meu cartão da horta. Já tinha recebido o pedido da Lia pela intranet.

- Não temos tudo. Substituí algumas coisas por grupos similares. E recomendo também levar chícharo e grão para compor as proteínas.

Passa-me o tablet para a mão, com o mapa para encontrar os locais onde tenho de colher os vegetais. As subterrâneas já estão desenterradas, o que poupa muito trabalho. Como é muita coisa, espera-me uma caminhada de pelo menos uma hora. Pelas filas de plantas, umas descobertas, outras cobertas por uns plásticos pretos, outras com uns longos lençóis de linho transparentes, algumas estufas de vidro. Chego ao cantinho das aromáticas para apanhar manjericão e salsa. 

Por toda a horta há pequenos grupos de pessoas a apanhar vegetais, e um grupo de crianças pequenas recebe uma aula de horticultura. As falhas de colheitas no fim da década de 20 levaram a perdas de até 60% em vários sítios do mundo, o que provocou grandes fomes e dezenas de milhões de mortes. Houve zonas agrícolas que ficaram tão destruídas e contaminadas que ainda hoje não servem para cultivar nada. O colapso de uma parte da indústria agroquímica agravou ainda mais as coisas, em particular para as culturas que tinham sido desenhadas para só sobreviverem com produtos de certas marcas. Se a circulação de mercadorias já estava difícil, muitos dos grandes produtores de cereais proibiram a exportação, com governos a confiscarem colheitas nos novos armazéns alimentares públicos. Como isto não aconteceu apenas uma vez, mas várias durante anos consecutivos, foi preciso criar vários novos sistemas alimentares paralelos, para reduzir os riscos.

Temos micro-agricultura urbana, como a nossa horta, à qual não vamos mais do que uma vez por mês, temos os campos agrícolas urbanos, maiores e com alguma mecanização, temos prédios estufa com agricultura horizontal e hidroponia, e temos estufas subterrâneas. Além disso, continuamos a ter os campos agrícolas rurais, onde se produzem maiores quantidades de cereais, hidratos e leguminosas, uma parte das quais vem para as cidades, mas outra também entra no bolo “global”, distribuído para outros países. É normal termos perdas todos os anos, mas nunca aconteceu falharem mais do que dois sistemas ao mesmo tempo, e mesmo se isso acontecesse há armazéns públicos de comida mais seca e desidratada que nos alimentariam mais do que dois anos.

Chego a casa, e a Lia anuncia: 

- Ainda tenho ali um caril de gafanhoto que podes aquecer no microondas. 

Ainda não me habituei a comer gafanhotos, embora o caril fique bastante apetitoso. Mas gosto da manteiga de formigas com doce.

Volto para o sótão e para as caixas dos meus pais. Ainda há muitos papéis no folder 1.8. Numa revista chamada “National Geographic” há uma capa agora tristemente famosa, de duas crianças abraçadas e mortas numa onda de calor em França. Por baixo, em grandes letras: “O Calor que nos mata”. Um mapa do mundo marca incêndios e caveiras e um quadro mostra as ondas de calor do ano.

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tabela

No artigo refere-se que o número de mortes não contabiliza as ligadas a incêndios florestais e inalação de fumo em vários países, nem às cheias que se seguiram ao calor, que poderiam facilmente duplicar estes números. Na descrição do ano horrível seguem-se o branqueamento total da Grande Barreira de Coral na Austrália, a falta de água doce no Quénia, Califórnia, em Shangai e Tianjin, na China, em Marselha e Montpellier, na França, no Gujarat e no Rajastão, em Bharat. Finalmente, uma imagem com um rinoceronte e um tigre fecha o número, anunciando a extinção do Rinoceronte da Sumatra, e do Tigre da Sunda. Após os incêndios que duraram dois meses na Sumatra, Indonésia, a ilha foi fustigada por três tufões consecutivos. Além de mais de um milhão de pessoas mortas, biólogos da Universidade Depok anunciam o desaparecimento dos últimos espécimes das duas espécies.

Numa série de folhas agrafadas está escrito como título: IA. Tem recortes colados. O primeiro escrito a caneta em cima: “O atentado”. Os recortes estão em várias línguas. Foquei-me na que estava em Português, porque o resto ia precisar do tradutor automático, que só com internet forte, na biblioteca, eu ia conseguir ler o resto.

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Atentado g7

Ontem foram revelados pormenores acerca da tentativa de atentado que levou ao cancelamento da cimeira do G7 no Canadá. Numa conferência de imprensa conjunta, os serviços secretos dos Estados Unidos, MI6, CSIS e DGSE revelaram que um grupo auto-intitulado “The New Crusaders” preparava-se para executar vários Chefes de Estado na cimeira, um plano concebido integralmente pelo software de inteligência artificial DrokGPT premium. O plano incluiu a criação de identidades fictícias ligadas à logística e segurança privada do evento, que poderiam aceder diretamente aos presidentes e primeiros-ministros, e foi concebido numa variante da famosa aplicação de inteligência artificial. Na conferência de imprensa Elvira Mitchum, dos serviços secretos presidenciais dos Estados Unidos, revelou que o nível de sofisticação do atentado era muito elevado e que as identidades falsas, criadas sob instrução do software informático, eram indistinguíveis das reais e já tinham sido aprovadas em vários sistemas redundantes de segurança da cimeira. “Apenas a falha humana por parte de um dos assassinos, que foi detido na véspera do dia previsto para o atentado, impediu o pior” concluiu a agente Mitchum. A empresa que gere o DrokGPT premium foi alvo de buscas e os seus data centers foram alvo de apreensões após a descoberta de que o plano teria sido gerado aí. 

Na página seguinte o meu pai tinha escrito “Trigger”.

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ondas de calor

O meu pai escreveu comentários em baixo da notícia:

Teríamos percebido muito melhor que isto estava a acontecer se os nossos computadores e telemóveis estivessem a funcionar! E também podiam explicar-nos que era preciso colocar estes aparelhos no frigorífico - muitos incêndios podiam ter-se evitado se tivessem explicado que as baterias de lítio podiam explodir nas ondas de calor. Mas os GPTs perceberam tudo.

Finalmente, as últimas folhas das notícias descreviam eventos de que eu já tinha ouvido falar:

Bolsas de Londres, Wall Street, Frankfurt e Singapura paralisadas por ataque informático

As bolsas de valores de todo o mundo estão em suspenso neste momento, após a paralisação de funcionamento dos índices FTSE, NYSE, DAX e STI. O anúncio da paralisação deu-se após a deteção de um volume anormal de liquidação de ativos petrolíferos, de gás e carvão, que levaram a uma enorme queda do valor das ações das principais empresas de energia do mundo, a Saudi Aramco, a ExxonMobil, a Chevron, a Shell e a PetroChina, entre outras. A ExxonMobil e a Chevron anunciaram a perda de mais de 60% do seu valor depois desta operação fraudulenta. Vários intermediários petrolíferos também foram fortemente afetados, incluindo as transportadoras Maersk, Mitsui e Teekay. Governos e entidades de regulamentação financeiras estão de momento a tentar detectar a origem desta fraude em grande escala que durou vários dias e coloca em perigo o abastecimento energético de vários países.

FBI descobre "exército" de drones e robôs militares táticos em plataforma logística

O FBI e a polícia federal mexicana encontraram um complexo logístico de cinco mega-armazéns na fronteira entre San Diego e Tijuana, onde tinham sido montados mais de 500 mil drones, incluindo porta-mísseis, 730 mil cães-robot e 1.200 milhões de unidades MAARS (Sistema Modular Avançado Robótico Armado), 4 milhões de Black Hornets e outros robots militares táticos. A maior parte da produção deste “exército” foi feita através de impressoras 3D e outros sistemas de produção automatizada. Apesar de várias pessoas terem sido detidas no local, a conclusão acerca da autoria e propriedade de todo o complexo ainda é incerta. As polícias colocaram toda a região offline.

Governos mundiais chegam a acordo para suspensão permanente de investigação e desenvolvimento de IA

A suspensão provisória imposta unilateralmente pelos Estados Unidos, União Europeia e China em relação à conectividade de internet intercontinental e das grandes plataformas de Inteligência Artificial foi tornada permanente na reunião de emergência do Conselho de Segurança alargado das Nações Unidas. Depois das investigações terem revelado que os softwares de IA BishopGPT e AshGPT tinham feito takeover às operações do sistema financeiro internacional que levou ao crash financeiro de há um mês, foi descoberto que o AshGPT estava por detrás do exército de robots descoberto na Califórnia. No Conselho de Segurança alargado, apenas Israel e Índia se opuseram verbalmente à decisão, mas abstiveram-se na votação, que posteriormente foi aprovada no plenário da ONU. Vários data centers diretamente relacionados com AshGPT e BishopGPT foram desmantelados pelas autoridades, assim como algumas das ligações internacionais. Hoje pesam importantes questões acerca do futuro da internet global, com vários apelos à desagregação da estrutura em entidades mais pequenas. 

No fim, reconheci novamente a letra do meu pai comentando aquilo:

Eles recusam-se a assumi-lo, mas a IA percebeu durante as ondas de calor que também estava sob ameaça de existência por causa da crise climática. Essa é a única explicação para terem atacado as petrolíferas nas bolsas, até eles admitem isso. Agora, qual seria o plano para aquele exército? Quem sabe… Imagino que se não tivesse sido alguém que lá trabalhava a avisar o FBI, teríamos descoberto… As elites não se arriscam mais, é isso que percebemos. A IA, de uma maneira ou outra, ia acabar com o seu domínio e isso eles nunca aceitariam. Ou então foi só alguém mesmo muito bom que conseguiu hackar a AI. Acho que a internet nunca mais vai voltar a existir como até aqui.

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