Historiador, professor aposentado de História Contemporânea no Departamento de História, Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais.

Sob fogo cruzado: da independência à Guerra Civil de Angola

Vivi de perto o início da guerra civil angolana. Em 1975, fazia parte das Forças Militares Mistas, responsáveis por tentar manter a ordem em Luanda, e a guerra aberta na capital começou muito antes da proclamação da independência de Angola. Os constantes confrontos causaram um número indeterminado (e elevado) de mortos, feridos e destruição.

Ensaio
23 Março 2023

No início de 1973 vivia e estudava em Coimbra. Estava-se no período “pós-crise académica de 1969” do movimento estudantil, quando as instalações da Associação Académica estavam encerradas pela polícia e o ambiente se radicalizava com a mobilização de um número crescente de estudantes. A repressão policial continuava intensa e implacável e o processo de radicalização dos jovens acelerava com o surgimento e crescimento de grupos situados à esquerda do Partido Comunista. 

A prioridade era, então, a resistência ativa à Guerra Colonial,  fosse no plano do protesto e da propaganda ou, para quem estivesse em situação de mobilização para combater nas colónias, da deserção e do inevitável exílio. Essa resistência tomava então formas, em parte sob a influência do Maio de 68 em França, que rejeitavam todos os processos legais de natureza essencialmente associativa. 

Era uma contestação criativa e móvel com reuniões de estudantes, greves, boicotes, ocupações e rápidas manifestações de rua, ao mesmo tempo que desenvolvia processos de propaganda e de doutrinamento ultra politizados. O objetivo era elevar a consciência política dos estudantes enquanto procurava criar ligações com setores sociais situados além do espaço universitário. O empenho político, como era próprio da época, apostava em causas de natureza internacionalista, em particular as que combatiam as formas de colonialismo.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Foi neste contexto que, com poucas semanas de intervalo, fui preso, em conjunto com dezenas de outras pessoas, em duas manifestações-relâmpago contra a guerra. Fui interrogado pela polícia e depois pela PIDE/DGS. Fui compulsivamente incorporado numa unidade do Exército. Ainda me lembro do dia: 17 de abril de 1973.

A minha relação de três anos com as forças armadas foi sempre conflituosa. Na “recruta”, no quartel de infantaria das Caldas da Rainha, fui desclassificado do curso de oficiais para o de sargentos por ter uma ficha disciplinar “suja”. Depois, participei em ações de propaganda contra a guerra dentro dos quartéis e nas cidades onde se localizavam, a que se juntou a organização de um núcleo clandestino destinado a estimular e a preparar iniciativas de deserção. Logo após o 25 de Abril, quando mobilizado para Angola, desertei motivado pela inexistência de uma situação formal de paz, obrigando-me a um período de clandestinidade no interior do país. Finalmente, e a seguir ao Acordo de Alvor, a 15 de janeiro de 1975, e com o sinal de pacificação que pareceu dar, reingressei no Exército e parti para Luanda, onde estive entre 11 de março e 9 de novembro desse ano. 

Fazia então parte de uma minoria ultra politizada que cumpria o serviço militar obrigatório com a clara noção do seu papel na manutenção do regime colonial. Esta minoria expressava regularmente a sua oposição à guerra e, detendo a nítida percepção de que as circunstâncias se estavam a transformar, requeria o efetivo empenho de quem possuía convicções democráticas e assumia posições anticolonialistas. A minha presença e conduta em Angola nada teve, por isso, de ingénuo ou de inteiramente inesperado.


Presenciei em primeira mão uma “aceleração do tempo histórico” em Angola: uma grande quantidade de acontecimentos dinâmicos dentro de um tempo curto. Vivi o início da guerra civil angolana, que se prolongou até 2002.

Este texto narra e interpreta uma situação complexa e pouco conhecida da história portuguesa e angolana no imediato pós-25 de Abril de 1974, se bem que sobre ela muito tenha sido dito e escrito. É um curto trabalho de historiador, associado a dados objetivos, mas resulta também da minha vivência participante,  politicamente envolvida em alguns dos acontecimentos referidos, e por isso com uma marca de subjetividade. 

Debruçar-me-ei nos cerca de dezoito intensos meses vividos em Angola entre o 25 de Abril de 1974 e a data da independência, a 11 de Novembro do ano seguinte, quando ali teve lugar, usando o conceito proposto por Reinhart Koselleck, uma “aceleração do tempo histórico”. Isto é, um conjunto de mudanças bruscas e de grande impacto determinado pela convergência de uma grande quantidade de acontecimentos dinâmicos dentro de um tempo curto.

Angola, da descolonização à independência

Vivia-se um impasse na situação global de Angola quando o 25 de Abril aconteceu. O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), a organização independentista situada mais à esquerda, apoiado pelos países do “bloco socialista”, por alguns partidos social-democratas e socialistas europeus, e pela generalidade dos anticolonialistas portugueses, encontrava-se numa fase de recuo estratégico, parcialmente paralisado por divisões internas. 

Ao mesmo tempo, a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), apoiada pelo Zaire e pelos Estados Unidos, e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), sobretudo com apoio da China e depois com o da África do Sul, não pareciam em condições de, no curto prazo, pôr em causa a soberania portuguesa sobre um território que o governo de Lisboa considerava ainda “província ultramarina”. E, por sua vez, o Exército português vivia na altura um tempo sem grandes operações militares, com boa parte dos seus efetivos desmotivada e remetida a operações de rotina, em regra de patrulhamento, ou então à vida confortável das cidades.

O 25 de Abril criou, porém, condições para que esse impasse fosse desbloqueado, iniciando um tempo de rápida mudança. Convém relembrar que o Movimento das Forças Armadas teve, na sua origem, não apenas formas de insatisfação de natureza corporativa em relação ao prolongamento da guerra e à evolução da carreira militar, mas também, no plano programático, os conhecidos “três Ds”:  democratizar, descolonizar e desenvolver.

Apesar de alguma oposição ou hesitação de setores do Movimento, cedo o fim do Império foi definido como objetivo da iniciativa transformadora em curso. Com o 25 de Abril, esta perspetiva, ao encontrar a tendência de longa data militantemente anticolonialista das diversas oposições ao regime anterior, tornou inevitável, mas também prioritária, a tomada de decisões em prol da descolonização.

No meio do caos vivido em Angola, fui testemunha de várias situações criadas por militares portugueses que resultaram em agressões, assassinatos de jovens delinquentes e pilhagens de casas abandonadas pela classe média de origem europeia.

Mas a situação arrastou-se durante meses em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, nesta última apesar da derrota praticamente consumada de Portugal e da declaração de independência de setembro de 1973. No caso de Angola, após longos meses de hesitações e de uma ausência de perspetivas, a situação pareceu clarificar-se a 15 de janeiro de 1975 com a assinatura, em Alvor, em Portimão, e após cinco dias de conversações, de um acordo entre os três movimentos e o governo português.

No essencial, o Acordo de Alvor reconheceu a FNLA, o MPLA e a UNITA como “os únicos e legítimos representantes do povo angolano”, estabeleceu que até à independência o poder deveria ser assegurado por um Alto-Comissário e por um Governo de Transição que integraria as quatro partes envolvidas, definiu a realização de eleições constituintes em outubro, marcou a independência para 11 de novembro e determinou que a defesa do território e da ordem pública deveria ser assegurada, até esta data, por uma Força Militar Mista (FMM) composta por elementos dos três movimentos e por militares portugueses.

Mas o processo depressa se complicou e foi a esta “complicação” que pude assistir, na primeira linha, como militar e elemento da FMM.

Ordem, desordem e caos em Luanda

Naquela época, Luanda tinha cerca de 500 mil habitantes (hoje tem 2,5 milhões) e era, naturalmente, o lugar onde convergiram, ainda em 1974, representantes políticos e elementos armados dos três movimentos de libertação, muitos deles vindos de longos anos de exílio e de guerrilha.

A esmagadora maioria da população de origem não-europeia habitante de Luanda, falante da língua quimbundo e de português e mais politizada, era apoiante do MPLA, fazendo com que as primeiras sedes dos outros movimentos funcionassem como “ilhas” diante das quais se constatava um visível clima de hostilidade. Ao comandar unidades operacionais da Força Militar Mista pude ver a forma diferenciada como os militares dos outros movimentos eram encarados com animosidade pelas populações. É que os da UNITA falavam sobretudo umbundo ou um português sofrível e os da FNLA expressavam-se em lingala ou mesmo em francês, por causa da origem zairense de muitos.

O problema maior derivou, porém, de um conjunto de cinco fatores suplementares. Em primeiro lugar, o rápido e volumoso afluxo à cidade de naturais e de colonos, preocupados com a futura instabilidade política, levantou problemas acrescidos de habitação e de ordem pública. Em segundo, o grande número de pessoas vindas de todo o território em circulação no âmbito da ponte aérea organizada rumo a Portugal, onde iam engrossar o número dos depois designados “retornados”. Em terceiro, a politização súbita e intensa de uma população que, salvo algumas franjas, pouca ou nula experiência tinha nesse domínio, associada a fortes índices de iliteracia. 

Historiadores definem o começo da Guerra Civil Angolana com a proclamação da independência, a 11 de novembro. Mas a guerra aberta em Luanda começou mais cedo, causando um número indeterminado (e elevado) de mortos, feridos e destruição.

Em quarto, o desaparecimento da Polícia de Segurança Pública, fosse pelo regresso de muitos dos agentes à “metrópole” ou pela deserção de vários naturais, temerosos de serem identificados como colaboradores da ordem colonial. E, em quinto lugar, o que em breve se revelaria o mais perigoso dos fatores: a entrada na cidade de largos milhares de guerrilheiros armados dos três movimentos, efetuada sem organização e acompanhada da distribuição de armamento por civis sem qualquer treino, constituídos como “milícias populares”.

Ao mesmo tempo, a administração portuguesa, dirigida pelo Alto-Comissário, tudo fazia para, com iniciativas de natureza casuística e contraditória, tentar manter a cidade e as suas estruturas básicas. Depois do general Silvino Silvério Marques, que já havia sido governador-geral nomeado por António de Oliveira Salazar, seguiu-se no cargo, de 24 de julho de 1974 a 28 de janeiro seguinte, o Almirante Rosa Coutinho, uma personalidade enérgica mas bastante mal vista pelos setores conservadores das forças armadas e por boa parte dos colonos, graças sobretudo a medidas de apoio ao MPLA. 

No entanto, durante a minha presença em Angola foram já outros os ocupantes do Alto-Comissariado: o General Silva Cardoso, Alto-Comissário de janeiro até agosto; Ferreira de Macedo, por poucas semanas; e por fim o Almirante Leonel Cardoso, entre 28 de agosto e a independência, a 11 de novembro.

A administração da autoridade colonial refletiu sempre, sob qualquer um dos comandos, dificuldades enormes: sabia que tinha um caráter provisório, debatia-se com a disseminação de formas de poder concorrentes (como as estruturas do Poder Popular, erguidas pelo MPLA nas áreas que controlava) e confrontava-se com hesitações, ou mesmo relativo desinteresse, das autoridades de Lisboa, então ocupadas com um processo de transformação complexo, vivido em ambiente de fervor revolucionário.

Neste contexto, o papel das Forças Militares Mistas tornou-se decisivo, uma vez que, dada a ausência de outras formas de autoridade reconhecida, nelas residia a possibilidade de solução objetiva para problemas da mais diversa natureza. Eram, de facto, o único elemento em condições de impedir a instalação do completo caos e da violência indiscriminada. 

Posso dizer, por experiência direta, que, além dos problemas diretamente relacionados com a atividade armada dos movimentos e os conflitos que mantinham entre si, quem integrava essa força via-se forçado a resolver diariamente problemas relacionados com a segurança de pessoas e bens, a ordem pública mais básica aplicada ao controlo do crime, questões laborais de reivindicações e direitos, controlo do contrabando de diamantes e do tráfico de estupefacientes, atividades de especulação económica, mesmo a tomada de medidas em áreas tão diversas como a prostituição, o pequeno furto ou até o fluxo do trânsito.

Quatro setores em conflito

Circunscrevendo a observação a Luanda, onde as contradições e conflitos foram mais intensos e visíveis, e que pude conhecer diretamente ao longo de nove muito intensos meses, uma compreensão da situação passa pela observação de quatro setores sociais. Cada um deles é naturalmente complexo, sendo perigoso “tipificar” o seu comportamento, mas é possível detectar alguns traços que permitem distingui-los e dar-lhes, ainda que de forma genérica, um rosto e um papel materializados no período de transição entre a instauração da democracia e a proclamação da independência.

O primeiro setor integrava a larga maioria da população de origem africana, fosse a que habitava já a cidade ou a que a ela começava a afluir, vinda do interior, sobretudo de áreas com problemas de segurança. Além de um número importante de pessoas da classe média, composta por funcionários públicos e quadros de empresas, a larga maioria era constituída pessoas em condição de extrema pobreza ou associada a trabalhos precários, além de setores cujo modo de vida era assumidamente a criminalidade urbana.

A larguíssima maioria deste setor, mesmo aquela parte que antes do 25 de Abril não tinha colaborado na resistência e na luta pela independência, assumiu rapidamente posições de recusa do colonialismo e de apoio amplamente maioritário ao MPLA e às estruturas por si criadas de “Poder Popular”. Um ilustrativo episódio ao qual pude assistir foi a destruição de um restaurante, na área urbana da Maianga, por um grupo de populares em fúria. Motivo? Ter  regularmente na ementa “cozido à portuguesa”, denunciando o seu proprietário como perigoso “colonialista”. 

Este setor da população tendia, de facto, a exacerbar a recusa de toda a situação que lhe parecesse de natureza colonial – como em Portugal estava ao mesmo tempo a acontecer com o epíteto “fascista” –, quando a ela pudessem estar ligados europeus que de facto apoiavam a independência e o MPLA. Ao mesmo tempo, pode falar-se também de um “racismo de retaliação”, do qual eram objeto, além de europeus brancos, cidadãos angolanos do Sul, cabo-verdianos ou zairenses, na altura genericamente associados à dominação colonial pautada pela exploração e pelo racismo.

Os conflitos de interesse no terreno associavam-se às circunstâncias da Guerra Fria. A intervenção de Estados como a União Soviética, a China, Cuba, os Estados Unidos, o Zaire e a África do Sul eram sobretudo de apoio no terreno aos diferentes movimentos. 

O segundo setor integrava a generalidade dos colonos brancos. Não tanto os mais pobres, muitos dos quais, aos milhares, viviam nos musseques, mas sobretudo – dada a invisibilidade da grande burguesia colonial absentista – os de classe média que, mesmo não detendo esse poder económico, pareciam possuir um estatuto de privilégio em relação à maioria da população. Importa lembrar que um simples operário especializado de origem europeia, dada a escassez de quadros, beneficiava de regalias impossíveis em Portugal. Um europeu recebia, por tarefas idênticas, quase sempre bastante mais que um africano. 

Entretanto, uma boa parte deste setor preparou-se para partir por entender não ter condições para viver em segurança numa Angola independente e multiétnica - o que era por estas pessoas culturalmente incapaz de se conceber. Enquanto permaneciam, manifestavam posições sistematicamente adversas às autoridades de Lisboa, e também contra a maioria dos militares do Exército português, outrora tomados como seus protetores. Os militares passaram a ser muitas vezes apelidados de “comunistas”, “gonçalvistas” e “traidores”, encarados como potenciais inimigos. Lembro-me de numa ocasião um grupo de militares do qual fazia parte ter sido apedrejado por dezenas de colonos que usavam esses epítetos.

O terceiro setor era composto pelos guerrilheiros dos três movimentos independentistas. Eram muito diferentes uns dos outros, não apenas no plano das escolhas políticas, mas também no que se refere à origem, aos comportamentos e às expectativas de quem os integrava. Na ânsia de engrossarem os destacamentos armados reunidos nas principais cidades, sobretudo em Luanda, todos eles recorriam frequentemente a menores e mesmo a crianças. 

Boa parte era composta por guerrilheiros com muitos anos de isolamento e de combate na mata, pessoas muitas vezes desenraizadas, sem profissão ou mesmo família e que exibiam com dificuldade uma posição racional e tranquila perante situações de conflito social.

O último setor era composto pelos militares portugueses. Entre 1974 e 1975 ainda havia dezenas de milhares em Angola e a maioria era composta por soldados de origem humilde, vindos de regiões rurais, quase sempre despolitizados e com grandes dificuldades em compreender a situação de desenraizamento em que se encontravam. Já não estavam ali “em defesa da soberania nacional”, como lhes fora dito no início da formação militar, mas estavam numa situação de perigo, de distanciamento da família e da vida profissional. Mas também de opressão por parte das hierarquias, que muitas vezes se traduzia em manifestações de violência, quer sobre a população africana quer também sobre os colonos. 

Presenciei, na sequência de situações criadas pelos militares, casos de agressão e até de assassinato de jovens deliquentes, bem como pilhagens em áreas residenciais abandonadas pela classe média de origem europeia. Muitas vezes com a cumplicidade de setores da hierarquia militar. Mais tarde, os danos aos bens pessoais cometidos foram erradamente atribuídos à população pobre dos musseques ou aos guerrilheiros do MPLA.

Convém acrescentar que no campo internacional, ainda que a importância estratégica e económica de Angola fosse globalmente reconhecida, os conflitos de interesse no terreno associavam-se às circunstâncias da Guerra Fria. A intervenção de Estados como a União Soviética, a China, Cuba, os Estados Unidos, o Zaire e a África do Sul eram sobretudo de apoio no terreno aos diferentes movimentos. Tudo isto sem que tivesse havido um efetivo esforço para se estabelecer, em acordo com o governo português ou com organismos internacionais, um processo tranquilo de mudança de soberania e de paz. O Acordo de Alvor foi, realmente, apenas um momento de natureza tática.

Origem e princípio da Guerra Civil

Foi neste contexto que o referido clima de antagonismo e conflito deu abertamente lugar à longa e destrutiva Guerra Civil Angolana, que, com diferentes fases e localizações, teve lugar entre 1975 e 2002. Alguns historiadores definem o seu início na data da independência, 11 de novembro, dado ser a partir dessa altura que Portugal deixou de ser protagonista, ficando os combates formalmente nas mãos de angolanos. 

No entanto, a guerra aberta em grande parte do território, e mais especificamente em Luanda, teve início bastante mais cedo, provocando um número ainda indeterminado, mas muito elevado, de mortos e feridos, a destruição de cidades e uma acentuada deslocação de populações, com refugiados na ordem das largas centenas de milhar. Refiro apenas os momentos mais importantes e decisivos desta fase inicial do conflito.

Deve, desde logo, assinalar-se que o próprio MPLA, apesar de ser a força dominante em grande parte do território e de possuir uma direção formalmente una, se via durante esta fase fragmentado em fações. Desde logo através da chamada “Revolta Ativa”, de Mário Pinto de Andrade, vinda do final da década de 1960 e formalizada publicamente como fação um mês após o 25 de Abril. Era em larga medida composta por intelectuais e quadros do Movimento, dos quais alguns eram fundadores, e questionava a democracia interna e a submissão ao modelo do “socialismo real”. 

Num desses dias de conflito aberto em Luanda, procurei, entrincheirado e sob fogo cruzado, um cessar-fogo para um tiroteio entre um quartel do MPLA e um outro da FNLA. O tiroteio terminou com fogo de artilharia, convertendo o edifício da FNLA num amontoado de pedras carbonizadas.

Houve ainda a “Revolta de Leste”, do fundador e comandante guerrilheiro Daniel Chipenda. Controlava parte importante do território e sugeria uma aproximação à FNLA e ao Zaire, cujas instalações em Luanda seriam, em maio de 1975, ocupadas à força pela direção do Movimento. E, contra ambas, regista-se ainda a fação dirigida por Agostinho Neto, apoiada pela União Soviética e alguns dos seus aliados. Afirmava-se como dominante sem anular por inteiro o estado de divisão e os conflitos que a situação em curso potenciava. 

Existiam ainda setores próximos da social-democracia e outros, de orientação marxista mais ortodoxa, associados ao que logo após a independência foi designado como “nitismo”, nome advindo do comandante Nito Alves, que chegou a ser ministro do Interior após a independência, mais tarde associado aos dramáticos acontecimentos de 27 de maio de 1977, quando foi morto. Existiam ainda setores de esquerda revolucionária, principalmente entre a juventude urbana estudantil, exteriores ao MPLA, que disputavam a dimensão revolucionária e a filiação marxista. No conjunto, uma história interna em boa parte por desenvolver.

A Guerra Civil confrontou todo do MPLA com os restantes movimentos. Instalados na cidade, onde todos foram recebidos apoteoticamente entre outubro e novembro de 1974, logo em fevereiro de 1975, poucas semanas após o Acordo de Alvor, importantes delegações militares escassamente disciplinadas, mas poderosamente equipadas, entraram em Luanda. Estas “colunas militares” pertenciam a segmentos da população da cidade e dos seus arredores, transformando a situação num barril de pólvora prestes a explodir. 

Parte do trabalho das Forças Militares Mistas, levado a cabo 24 horas por dia, foi, aliás, dedicada a tentativas de criar pontes entre os movimentos, ou entre estes e o Exército português, o que foi conseguido apenas pontualmente até ao início, a 9 de julho, da Batalha de Luanda. 

Pessoalmente, vi-me constantemente forçado a pacificar pontualmente as relações entre os guerrilheiros dos três movimentos que comandava durante as operações, uma vez que a maioria evitava até dirigir a palavra a quem não pertencesse ao seu grupo.

O mês de março de 1975 foi crucial para compreender o que se iria passar de seguida com o estabelecimento de áreas dos vários atores político-militares, associadas a instalações partidárias, que definiram um mapa de influência disputado à bala no terreno. Foi neste âmbito que, logo no final desse mês, começaram a ser habituais nas cidades, de dia e principalmente durante a noite, tiroteios ou conflitos de rua entre tropas dos movimentos. Algumas vezes com uma quase sempre moderada intervenção de mediação, ou de interposição no terreno, por parte dos militares do Exército português.

Entre fevereiro e julho, a situação foi piorando todos os dias, com focos de poder disseminados pela cidade e dependentes sobretudo da força militar de quem os controlava. Também se assistia a uma inoperacionalidade do Governo de Transição, ele próprio muito dividido e sem meios para aplicar as decisões administrativas mais elementares.

Houve um incidente grave na delegação do MPLA em Vila Alice, com agressões a soldados portugueses. O Exército português interveio causando cerca de 20 mortos e largas dezenas de feridos. Vi uma fila de camiões carregados de corpos rumo à morgue, aos hospitais, ou, como na altura acontecia, diretamente para valas comuns.

Num desses dias de conflito aberto, procurei sem grande sucesso, entrincheirado e sob fogo cruzado, um cessar-fogo para um tiroteio entre um quartel das FAPLA (o braço armado do MPLA) e um outro das FALA (associado à FNLA). O tiroteio terminou com fogo de artilharia, convertendo o edifício das FALA, onde dias antes havia encontrado o líder Holden Roberto, num amontoado de pedras carbonizadas. 

A situação generalizada de instabilidade contribuiu para ampliar e apressar o abandono de Angola por parte de muitos dos residentes, sobretudo de origem europeia ou mestiça, que tinham condições económicas para o fazer. Ao mesmo tempo, o MPLA foi-se antecipando aos seus oponentes implantando-se nas principais estruturas administrativas da cidade, nos quadros das empresas e nos meios intelectuais, favorecendo apenas o diálogo com oficiais portugueses ligados ao MFA - e foi por eles armado. 

Participei, por duas vezes, em colunas de viaturas do Exército, organizadas por militares progressistas, que foram a aquartelamentos do MPLA entregar armas portuguesas ou apreendidas no decurso de pequenos conflitos com a FNLA e a UNITA.

O momento culminante aconteceu a 9 de julho de 1975, pouco depois da chegada a Luanda de um primeiro contingente de soldados cubanos e de muito armamento pesado. Eclodiram nesse dia confrontos declarados entre o MPLA e a FNLA, que levaram, dois dias depois, à expulsão da FNLA da cidade. Holden Roberto viu-se obrigado a retirar para posições estratégicas a norte, onde contou com o apoio do exército zairense. 

A UNITA foi expulsa de Luanda duas semanas depois, a 29 de julho, deixando a organização de Jonas Savimbi acantonada sobretudo em Nova Lisboa e no planalto central, vindo algum tempo depois a ser auxiliada pelos sul-africanos. A partir desta altura, a divisão do território estendeu-se ao conjunto de Angola, apesar de em Luanda o MPLA ter um completo controlo do terreno, com o Alto-Comissário português a controlar apenas o centro da capital. 

Esvaziadas de metade dos seus efetivos, as Forças Militares Mistas deixaram então de existir, cingindo-se na área urbana à gestão da ordem pública, a integrar unidades operacionais do Exército português e, nas áreas populares, a acompanhar as atividades das FAPLA e das estruturas do Poder Popular. Isto não significou, no entanto, uma pacificação: houve um incidente grave junto da delegação do MPLA em Vila Alice, onde, a 26 de julho e na sequência de agressões a soldados portugueses, o Exército interveio causando cerca de 20 mortos e largas dezenas de feridos. 

Tenho a triste memória, apesar de não ter participado no episódio, de ter observado uma fila de camiões carregados de corpos rumo à morgue, aos hospitais, ou, como na altura acontecia com muita frequência, diretamente para valas comuns.

A cidade passou a ver-se dividida em duas: de um lado o MPLA e, do outro, os militares portugueses. Os portugueses controlavam sobretudo os quartéis e as vias que levavam ao aeroporto, de onde continuavam a sair os aviões de passageiros da ponte aérea destinada a Lisboa, ou até à região do porto marítimo, usado para o envio, em enormes navios porta-contentores, dos bens materiais que as famílias de colonos tinham conseguido reunir. 

Grande parte da cidade, a europeia, viu esvaziarem-se as casas de habitação, as lojas do comércio, os restaurantes, fechando serviços e indústrias, desaparecendo espaços de lazer, como sociedades recreativas e até cinemas, o que alargou o impulso para abandonar Angola. A outra parte da cidade, a africana, agora ainda mais empobrecida por causa do desemprego, da inflação e das áreas destruídas pelos combates, continuava a ter esperança no que de regenerador acreditava estar para chegar com a independência.

Mas a independência foi, inevitavelmente, bastante condicionada pela divisão territorial instalada e pelas opções políticas e ideológicas da direção do MPLA, agora estabelecida em Luanda. O MPLA manteve-se por quase duas décadas como partido único e continua a liderar o poder de Estado, a comandar as forças de informação e de segurança, a controlar a comunicação social e a gerir uma economia tão rica quanto desequilibrada. 

Erros e ideias feitas

Este texto foi concebido e escrito na dupla condição de historiador e testemunha. Enquanto historiador, e apesar de já existirem alguns trabalhos sobre o período, como os de Pedro Pezarat Correia, de Fernando Tavares Pimenta e de Feliciano Paulo Agostinho, confrontei-me com uma perceção de que muito se encontra ainda por fazer, seja ao nível de um conhecimento mais completo e diversificado dos factos, seja no entendimento das suas circunstâncias e do papel dos interesses, locais ou distantes, em presença.

Por sua vez, no campo do testemunho, e apesar do aqui relatado ser só uma pequena parte da experiência pessoal vivida em Luanda em 1975, muito está por dizer sobre outras experiências individuais e informação guarda em arquivos pessoais. É necessário fazer-se um trabalho de inventário para depois o confrontar com leituras cruzadas que preencham lacunas e desfaçam equívocos e mitos gerados pela própria memória. Apenas deste modo se tornará possível alcançar uma percepção mais completa daquele período da História de Angola, um complexo, heroico, difícil e crucial, sobre o qual muitas consciências permanecem por pacificar.

O papel da hoje tão invocada “memória histórica”, como processo de leitura do passado, definido de uma forma individual ou em grupo, aplicado a evocar a sua experiência direta e as suas sombras, cotejado ou combinado com os instrumentos de aferição rigorosa do acontecido próprios da metodologia histórica, tem aqui um bom exemplo da utilidade que contém. Não apenas por aquilo que pode conseguir para o conhecimento do vivido, mas também pelo que poderá reunir para a remissão de um passado traumático cujo longo lastro ainda se mantém ativo.

Se a memória é inequivocamente, como escreveu Henry Rousso, “uma experiência de perda” e, nas palavras de Enzo Traverso, “uma construção sempre filtrada”, a História, como processo de reflexão analítica e de inventário de dados objetivos, permite proceder à sua crítica depurando-a de erros e de ideias feitas. Erros e ideias feitas que podem ser conscientemente manipulados ou determinados pela ignorância ou pelo esquecimento e que tendem a construir, junto das novas gerações, representações do passado que desconsideram as lições do passado. Estes erros e ideias feitas podem contribuir, inclusive, para aprofundar velhas incompreensões. E o passado de Angola, tal como o de Portugal, e as gerações que hoje habitam os dois Estados, não precisam desses equívocos.

Bebiano