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João Pedro Gouveia: “Há pessoas com dificuldades em gastar energia para aquecer o quarto onde dormem os filhos pequenos”

A cultura de desvalorização, a ineficácia das medidas governamentais e a débil comunicação sobre elas são os principais factores que contribuem para que milhares de famílias vivam em pobreza energética em Portugal. Calcula-se que haja entre 660 a 680 mil pessoas em situação de pobreza energética, mas o número pode ser bem maior: dois milhões.

Entrevista
23 Março 2023

Em Frades de Lomba, muitas das casas herdadas são ocupadas por gente idosa. Os espaços são de pequenas dimensões, com portas pintadas de cores escuras, ferro fundido, e grande parte das paredes são de pedra. As janelas são antigas e custam a fechar e nas fendas laterais das casas é possível ver-se os raios de sol da rua. Se a madeira que reveste o chão dá sinais da passagem do tempo, é na zona junto à lareira que as marcas escuras de cinza entranham no soalho: aparecem no inverno e nunca desaparecem por completo no verão. É também nestas casas que o risco de acidentes graves se torna maior. 

No início do mês de março registou-se mais uma morte por carbonização nessa mesma vila do distrito de Bragança: uma idosa caiu na lareira. Este é um dos grandes problemas destacados por João Pedro Gouveia, investigador na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa integrado no grupo de investigação CENSE (Center for Environmental and Sustainability Research). Pouco antes de se sentar à conversa com o Setenta e Quatro, alertou que já houve quatro mortos nas mesmas circunstâncias desde o início do ano.

A contínua falta de políticas de habitação fez com que a pobreza energética se tornasse um problema cada vez mais grave em muitas casas em Portugal. O acesso a equipamentos tem vindo a diminuir, as alternativas usadas põem em risco a vida da população e o acesso a soluções é cada vez mais escasso e mais caro. Os agregados familiares em situação de pobreza aumentaram. Falamos de famílias com despesas em energias na ordem de “mais de 10% do total de rendimentos” e que acumulam a “situação de pobreza monetária ou económica”. E a impossibilidade de manter as casas em condições de conforto térmico é transversal à sociedade. 

Para o investigador da CENSE, é importante distinguir os termos “pobreza energética”, “pobreza” e “desconforto térmico”, pois tendo por base os indicadores, os números são outros: “diria que dois milhões pessoas vivem em pobreza energética no país”. 

Não desacreditando a importante ação das políticas públicas nacionais nos últimos três anos, Gouveia aponta críticas à Estratégia Nacional de Pobreza Energética 2022-2050 e a medidas como o Vale Eficiência, que poderiam ter impactos bem maiores junto da população. “Se se lança dinheiro sobre o problema mas não se está a ver qual é o impacto esperado de redução de pessoas em pobreza energética ou de habitações renovadas, só se tapam buracos.”

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Entre 660 a 680 mil portugueses vivem em pobreza energética severa. Estes dados foram revelados em janeiro deste ano, aquando da implementação da Estratégia Nacional para o Combate à Pobreza Energética 2022-2050. Podemos dizer que são representativos? 

Portugal, ou melhor, os Estados-membros da União Europeia têm de olhar para a pobreza energética nas suas políticas e nos seus planos de longo prazo, identificando-os junto da Comissão Europeia. O sítio “mais normal” para se fazer isso seria no PNEC [Planos Nacionais de Energia e Clima] de 2030. 

Na altura, Portugal fez um plano no qual não tinha refletido muito sobre a questão da pobreza energética e, portanto, escreveu lá três ou quatro ideias genéricas que diziam basicamente: "é preciso olhar para o tema, porque é muito importante". Ficou-se por aí. Conseguimos perceber que as preocupações e obrigações políticas sobre este tema estavam muito distantes e esse documento era, claramente, muito fraco no que tocava à questão da pobreza energética.

“Apesar de múltiplas medidas pontuais e de novas iniciativas com incentivos diversos, o parque habitacional continua a ter má qualidade. Vivemos num país com cerca de 80% dos edifícios a serem de má qualidade e com baixa eficiência energética.”

Não há muitos países europeus que tenham uma Estratégia de Pobreza Energética. No entanto, no final de 2021, a secretaria de Estado começou a reunir algumas entidades públicas como a ERSE [Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos], a DGEG [Direção-Geral de Energia e Geologia], a ADENE [Agência para Energia] e eu, na altura, como especialista do tema, integrei também este debate para contribuir com algumas reflexões para se definir a Estratégia. 

A secretaria de Estado definiu os pontos da Estratégia e foi lançada em consulta pública. Isto aconteceu em março ou abril de 2021, o que por si só já nos deixa alguns alertas, porque as pessoas responderam à consulta pública e ficaram dois anos sem saber da Estratégia. Nos últimos dois anos fui perguntando a quem é de direito o que se passava e a resposta acabava por ser sempre sobre outras prioridades. 

Passados dois anos volta a ser relançada para consulta pública. 

Sim, nem se percebeu se era o mesmo documento ou se tinha algumas revisões. De facto fizeram alguns ajustes, mas coisas pequenas, nada transformativas. Aliás, a consulta pública da Estratégia terminou a 3 de março. 

O número de pessoas em pobreza energética que o Governo anuncia como "consensual" - considerando que a franja da população em situação de pobreza monetária também vive em pobreza energética - é igual ao de há dois anos. Estamos a dizer que as pessoas que há dois anos denunciaram esta situação de pobreza energética são as mesmas de agora? 

O problema desta Estratégia é que não usa os dados mais atuais. Uma estratégia lançada em 2023, o que até é estranho porque se chama Estratégia 2022-2050, não usa os dados mais recentes que existem? E falo de dados de acesso a todos, como do Eurostat, do INE e de muitos outras instituições. 

Se estamos a representar ou a perspetivar os próximos 30 anos com um plano ou com uma estratégia, não se pode estar a usar como ponto de partida dados desatualizados, porque aí pode estar a afetar os nossos objetivos para pior. 

Como dizia, estes números aparecem na Estratégia, mas já apareciam há dois anos. Não é nenhuma novidade. O ministério, ou seja, o Governo decidiu fazer uma diferenciação entre o que era, ou consideravam ser, pobreza energética moderada e severa. Chegámos aos 600 mil, quase 700 mil, numa lógica de rendimento. Olharam para os indicadores típicos de pobreza energética usados a nível europeu, que não são grande coisa: dados sobre a incapacidade de aquecer a casa, o atraso do pagamento de contas de bens, o que não é mais que energia, o desconforto no verão e o desconforto no inverno. 

Estes indicadores foram usados na nossa estratégia portuguesa e identificados como principais para monitorizar a situação. Basicamente, olharam para as pessoas com baixo rendimento e com incapacidade de aquecer a casa que correspondiam estes indicadores. No entanto, diria que temos um problema mais alargado. 

A questão aqui da pobreza severa está assente no rendimento das famílias. Então há uma menor distinção entre o que é pobreza energética e pobreza por si. Se olharmos para uma fatia da população com menores rendimentos, estamos a dar prioridade ao rendimento como métrica do problema e sabemos que pobreza é bem mais do que isso. Não é só o rendimento. Olhar só para a dimensão da pobreza severa ou extrema, é curto, é preciso ser mais abrangente. Aí chegamos a dois milhões e meio de portugueses, sendo o mais realista. 

As políticas de habitação ou as assimetrias demográficas também acabam por influenciar a realidade de pobreza energética? 

O problema é mais estrutural e começa logo na base. Acredito que não é uma questão tanto de disparidade regional. Claro que há zonas mais vulneráveis por diferentes razões, mais especificamente pelo clima. Zonas rurais têm potencial de maior vulnerabilidade, baixos rendimentos, desemprego e um maior número de idosos.

Passamos a ter uma combinação de vulnerabilidades: o parque edificado com o clima a amplificar caminha lado a lado com as características socioeconómicas de determinadas regiões do país. Mas não se fica por aqui. Os equipamentos que se usam em zonas mais rurais recaem, maioritariamente, nas lareiras, o que agrava. 

O primeiro documento a regular as condições térmicas dos edifícios só foi publicado em 1990, o que, em comparação com grande parte dos países europeus, foi bastante tardio. Isso teve ou tem repercussões nos dias de hoje?

Claramente. O acesso pode ser mais difícil em determinadas circunstâncias, mas não deixa de ser um problema estrutural. E, na verdade, não há neste momento muita volta a dar a esta ideia. A nível europeu, Portugal foi dos países onde o regulamento térmico modificado e a preocupação com a eficiência energética apareceu mais tarde, apenas nos anos 1990. É muito significativo, porque em Espanha, por exemplo, que é um país vizinho com características climáticas, socioeconómicas e históricas semelhantes, surge dez anos antes. Mas houve países europeus que o introduziram muito antes, a meio do século passado: a renovação pós-II Guerra Mundial teve sempre essa preocupação. 

Em Portugal sempre houve aquela ideia de que o inverno é ameno e, portanto, passamos bem e pode-se construir mal. A prova, mais que provada diria, é que foi tudo mal pensado. A consequência traz-nos esta dinâmica muito problemática. Temos, de um lado, a dimensão dos edifícios e, por outro, a razão que se torna mais problemática: o clima. 

Os países do Sul da Europa, como Portugal, Itália, Grécia, Malta e Chipre, apesar de terem invernos menos rigorosos quando comparados a países do Centro e Norte da Europa, têm taxas de excesso de mortalidade no inverno consideravelmente superiores a países nórdicos como a Finlândia e a Suécia. Embora 20% das habitações do país tenham direito a uma tarifa social para ajudar no pagamento das contas de eletricidade e do gás natural, o acesso é limitado e escasso. 

Nunca surgiu a oportunidade, porque também se tornou menos significativo pensarmos em redes de calor, o chamado District Heating como acontece em outros países europeus. Há zonas em que é preciso, porque o inverno é mais severo e não há pessoas suficientes para as disponibilizar [redes de calor]. Não há densidade populacional suficiente para se construir uma rede de calor, como é o caso de Bragança ou da Covilhã. É tudo espalhado pela montanha em zonas dispersas. Não há propriamente esse benefício em termos económicos. E as alternativas que se encontram são as lareiras, que têm vários problemas. Há uma certa adaptação ao problema, mas criam-se outras situações, algumas delas graves: pessoas morrem. Ou morrem por monóxido de carbono ou porque caem na lareira. Mas isto são dados que não se ficam apenas pelo inverno. Ainda no verão passado tivemos uma das piores secas da nossa história. Apesar de, neste ângulo, a produção de energia não se mostrar tão alerta, os problemas vão aumentar a longo prazo.


“As pessoas não têm dinheiro suficiente para investir em coisas mais estruturantes e com melhor eficiência energética. Portugal tem cerca de 25% das habitações com problemas de humidade, bolor e infiltrações.”

Sendo uma questão e uma realidade tão assente e próxima da população, porque é que levámos tanto tempo até que as políticas públicas se debruçarem sobre o tema? 

E mesmo quando se debruçam, acabam por errar. Não só há uma falta de consciência, há também falta de soluções tangíveis. Muitas pessoas simplesmente não fazem ideia de qual é a classificação de eficiência energética da sua casa e de como poderia ser melhorada. Se lhes perguntarmos qual é o maior problema, elas referem: os preços da eletricidade. 

Depois, a ideia do crescimento rápido das cidades com a vinda das pessoas, que viviam nas zonas rurais para centros como Lisboa e Porto ou para outros sítios no litoral, exigiu uma rapidez que não padeceu de grandes ações. Não houve ações mas houve resoluções imediatas: a chamada autoconstrução. E o mesmo aconteceu com as pessoas que regressaram das antigas colónias. 

A construção feita pelo próprio foi-se tornando cada vez mais normal e "foi-se fazendo". O regulamento apareceu tarde e quando apareceu não era, de todo, exigente. Nas habitações de 1990 a coisa foi demorada. Diria que só mais nas atualizações dos regulamentos, em 2006 e 2012, começaram a debruçar-se mais no isolamento, na qualidade das janelas e no acesso a materiais de construção. Portanto, temos um país inteiro mal construído. 

Melhorar a eficiência energética das habitações envolveria renovar um país?

E mesmo assim poderia não ser suficiente. Enquanto engenheiro do ambiente e tendo trabalhado nesta área da Energia durante muito tempo, digo que há um problema muito significativo, mas que muitas vezes não é identificado. A eficiência, ou a falta dela, tem uma consequência muito grande para as pessoas. Neste sentido, não há volta a dar, porque esta ligação entre o rendimento, a habitação, a qualidade da habitação, dos equipamentos que são utilizados e o preço da energia afetam redondamente. 

Em Portugal, apesar de múltiplas medidas pontuais ao longo dos anos e de novas iniciativas que têm resultado em incentivos diversos, o parque habitacional continua a ter má qualidade. O ano passado foi publicado um parecer onde se registava que cerca de 75% das famílias portuguesas vivem em casas que não cumprem os requisitos modernos de comportamento térmico dos edifícios. Hoje, vivemos num país com cerca de 80% dos edifícios a serem de má qualidade e com baixa eficiência energética. 

A atual estrutura de como lidamos com políticas energéticas está a funcionar? Esta discussão nacional é clara nesse sentido? Se pensarmos no nosso futuro sistema de energia, Portugal deve caminhar em que sentido? 

Tal como as estatísticas o dizem, a nossa “política” atua, mas a longo prazo e precisa de atuações e processos diferentes. Coisas básicas como acesso aos equipamentos individuais, por exemplo. 

As pessoas utilizam equipamentos individuais de divisão a divisão, com um ventilador ou um aquecedor a óleo, que sabemos ser bastante ineficiente e que tem um custo grande. Claro que custam 50 euros ou cem euros, porque as pessoas não têm o dinheiro suficiente para investir em coisas mais estruturantes e com melhor eficiência energética, com mais calor, como ar condicionado.

O inquérito anual da União Europeia sobre o Rendimento e as Condições de Vida indica que Portugal é o segundo país em que mais pessoas detectam infiltrações, humidade e decomposição em casa. 

Portugal tem cerca de 25% das habitações com problemas de humidade, bolor e infiltrações. Há essa ideia a contrapor. É uma questão cultural que vem dos nossos avós e de algumas situações dos pais, em que há esta percepção de que “é normal”. Isto é o desconhecimento e a iliteracia a falar.

Não é normal uma pessoa passar frio e estar desconfortável em casa. Não é normal vermos pessoas de gorro e de cachecol em casa. E vi muitas, vejo muitas ainda. Na altura da pandemia foi brutalíssimo. Tenho muitos alunos, não só portugueses como também estrangeiros, que estão em casas alugadas, num quarto só, e não têm equipamento de climatização, outros vivem com janelas partidas, além das [casas] cheias de bolor e que não são alvo de qualquer intervenção. Não é normal, não pode ser normal. E é essa mentalidade que temos de mudar também em Portugal. Diagnosticamos o problema.

Já se percebeu onde está a raiz, agora, como é que vamos olhar para a solução? Em que dimensão? É preciso que as pessoas percebam que não têm de estar desconfortáveis em casa. Chego a um edifício e, supostamente, devo despir, não me devo vestir. Em Portugal é ao contrário. Mesmo o regulamento térmico dos edifícios e as leis internacionais definidas pela Organização Mundial de Saúde definem que a temperatura normal num edifício é de 20 ou 21 graus e em Portugal isso é raríssimo acontecer. As consequências que isto tem na saúde devem ser aferidas.


“Os países do Sul da Europa, como Portugal, têm taxas de excesso de mortalidade no inverno consideravelmente superiores a países nórdicos como Finlândia e Suécia. Embora 20% das habitações do país tenham direito a uma tarifa social para ajudar no pagamento das contas de eletricidade e do gás natural, o acesso é limitado e escasso.”

Há muitos estudos científicos, não só médicos, mas noutras perspectivas que marcam as consequências de doenças respiratórias, pneumonias, gripes, problemas cardiovasculares e até problemas mais graves de saúde mental em situações mais severas de pobreza energética. Nem precisamos de olhar para a componente de as pessoas passarem frio ou calor em casa. Estamos a falar de problemas estruturais da habitação.Temos pessoas que reportam problemas nas janelas, buracos nas janelas e que não conseguem resolver, porque não têm dinheiro para investir. 

Há pessoas com problemas e dificuldades em gastar energia para aquecer o quarto onde dormem os filhos pequenos, mais vulneráveis, e têm de estar com o aquecedor a óleo que depois é a causa de uma fatura gigantesca. Estamos a falar de um quarto das habitações em Portugal. Não é só a classe energética, não ter isolamento ou passar frio, é mais grave que isso.

Na questão da pobreza energética estamos a falar de pessoas, não estamos a falar só de números. Falar de 600 mil pessoas, um milhão, dois milhões são números. Mas na verdade, transformar isso em experiências vividas é muito mais dramático. 

Idosos que estão acamados e que só tem lareira, o que é que fazem? E os idosos que não estão acamados, mas têm lareira na sala e o resto da casa está um gelo? E não se trata só de olhar para os grupos “clássicos” mais vulneráveis de crianças pequenas e idosos. É preciso olhar para outros grupos como os migrantes, pessoas com incapacidades físicas e com problemas mentais ou de saúde crónica.

E as famílias monoparentais. 

Outra dimensão extremamente importante. Já há alguma identificação em estudos internacionais do papel da mulher como o género que vive em situações mais vulneráveis, por diferentes razões ligadas à pobreza energética.

Voltando aos edifícios enquanto base estrutural do problema, o objetivo dos certificados energéticos que a Agência de Energia começou a aplicar aos edifícios não deveriam também ser uma solução para este problema? Como é que mais de metade dos edifícios em Portugal têm uma certificação extremamente baixa há mais de uma década?

Sim, há aí duas coisas a ter em atenção. Uma é que os tais regulamentos térmicos também promoveram esta ideia da certificação energética. E o que é que a certificação energética faz? Caracteriza a habitação e sugere medidas de melhoria, sugere. Mas, no geral, ninguém as faz, ninguém liga. "Coloque um ar condicionado, meta um solar térmico, isolamento", ninguém o faz.

Assim sendo, para que vale estes certificados? Em que condições é obrigatório ter uma casa com certificado energético?

Quando se tem uma casa nova. De acordo com os regulamentos térmicos das duas últimas décadas, uma casa nova equivale a um B -. Tomara nós que todas tivessem B - e mesmo assim ainda se criava problemas!

O regulamento térmico também não é super ambicioso, porque estamos a falar de uma casa construída hoje que vai durar pelo menos 50 anos. Temos muita política europeia e nacional para 2050, mas uma casa construída hoje terá problemas em 2050. Já não estará de acordo com o que devia estar. Este é um ponto. 

A isso junta-se a pouca ambição, porque depois há também a pressão dos engenheiros civis e arquitetos que dizem que as casas ficam mais caras. As casas ficam mais caras devido à especulação do mercado e ao mercado em si, não tem nada que ver com a qualidade. Às vezes é um trade-off meio estranho. Os certificados energéticos atribuem-se a casas novas, que estão no mercado ou estiveram no mercado de arrendamento ou de venda. Só nessas condições é preciso um certificado energético.

As estatísticas da ADENE, ou seja, do repositório de certificados energéticos, fala de 70%, mas, na minha opinião, é muito pior. Imaginemos que todas as habitações rurais de idosos que moram em Portugal não estão certificadas. As pessoas moram lá há 50 anos. Essas casas estão em condições muito piores, completamente degradadas. O parque edificado português é pior do que está reportado nas estatísticas.

Outra questão é que a maioria das pessoas não tem muito interesse em fazer essas alterações. Cerca de um terço dos 1,6 milhões de certificados energéticos foram atribuídos a residências. Menos de metade eram primeiras habitações, mas nem um terço do total de habitações em Portugal. Há muito para se certificar.

“Não é normal uma pessoa passar frio e estar desconfortável em casa. Não é normal vermos pessoas de gorro e de cachecol em casa. Tenho muitos alunos em casas alugadas, num quarto só, e não têm equipamento de climatização, outros vivem com janelas partidas, além das [casas] cheias de bolor e sem qualquer intervenção.”

Isto é também representativo de uma iliteracia energética pela gestão política e ambiental?

Um dos grandes problemas da Estratégia Nacional de Pobreza Energética, e de muitas outras, é que se lança dinheiro sobre o problema, mas não se está a ver qual é o impacto esperado de redução de pessoas em pobreza energética ou de habitações renovadas. Muitas vezes isto fica muito no ar, digamos assim. 

Os certificados são importantes, mas têm um problema metodológico: o consumo dado por um certificado energético reporta uma utilização permanente da casa, ou seja, a casa tem de estar permanentemente na temperatura de conforto. O que foge da realidade só por si. Se não estou em casa, por que razão a hei-de aquecer? 

O certificado não está ligado ao comportamento de consumo e à dinâmica do perfil de consumo de cada utilizador, mas sim à habitação. Em Portugal, por o nosso padrão de consumir ser o aquecimento de uma só divisão e não termos equipamento centralizado de climatização, há um gap no desempenho energético da teoria para o consumo real das estatísticas de cerca de 90%. Isto significa que o certificado é totalmente irrealista. 

Não podemos olhar para a eficiência energética como uma ideia de poupar dinheiro. As pessoas não consomem energia. Não é por isso que eu devo trocar uma janela, não é por isso que eu devo pôr isolamento. As medidas passivas na habitação são para aumentar o conforto, melhorar a qualidade do ar e reduzir problemas de saúde pública. É preciso ter a nuance de como é que se usa a certificação energética, porque poderia ser uma boa base de conhecimento.

O programa governamental de Edifícios + Sustentáveis foi bem sucedido? Quantas pessoas foram apoiadas?

A minha equipa coordenou as avaliações na faculdade. Fizemos avaliações ao programa, portanto sei bem até as histórias que foram aparecendo. O plano foi super bem sucedido, até por comparação. A partir do dinheiro dedicado às famílias diria que foi o programa que mais chegou às famílias, isto na lógica de eficiência energética nas habitações. 

Os programas anteriores ao PRR vinham com outras dinâmicas, como empréstimos aos bancos, e falharam redondamente. Os juros e os empréstimos bonificados eram quase piores do que comprar uma televisão ou um carro. Logo aí perdia-se o interesse. 

Por um lado, tivemos 106 mil famílias a concorrer. O dinheiro que estava alocado para quatro anos do PRR voou num ano e pouco. Isto mostra o sucesso do programa em si, ou seja, na ideia de cumprimento do PRR, mas sempre com alguns atrasos associados. Foram cerca de 30 milhões de euros dedicados a estas iniciativas só numa primeira fase. 

No relatório final da avaliação, publicado recentemente, percebe-se que pouca gente apostou no isolamento. Se era o crítico, então, o que é que aconteceu? É preciso perceber como e porquê. O que se passou? Foi o mercado? As pessoas não sabiam? É um financiamento que não chega? 

O ministro já falou sobre isto e disse que se ia lançar o remanescente dos Edifícios + Sustentáveis. Estavam alocados 130 ou 135 milhões de euros e gastamos com as 106 mil famílias cerca de 125 milhões de euros. Sobram dez milhões de euros. Pelo que se percebe, a ideia é fazer uma experiência piloto, olhar mais para os condomínios, para os edifícios integralmente e para o isolamento.

“Há muitos estudos científicos, não só médicos, que salientam as consequências de doenças respiratórias, pneumonias, gripes, problemas cardiovasculares e até problemas mais graves de saúde mental em situações mais severas de pobreza energética."

Mesmo assim vimos algumas famílias com dificuldades em aceder a este programa. Apontava-se muito o facto de terem de investir na totalidade, o que em condições precárias pode ser um entrave. 

Sim, vimos isso em maio do ano passado. Foi bem-sucedido? Foi. Há problemas? Claro que há. Há histórias mais difíceis. É muita gente, muitas candidaturas diferentes. Há atrasos do processo também. Mas isto aconteceu pela surpresa do sucesso, como dizia anteriormente. Diria que num próximo aviso já se conhece este interesse das pessoas. O planeamento provavelmente será outro e o acompanhamento ao longo dos meses também. Este programa dava cerca de 75% de co-financiamento, com IVA, ainda que com diferentes limitações. 

Se os Edifícios + Sustentáveis superaram as expectativas, os Vales de Eficiência lançados na mesma altura falharam redondamente. Fala-se da probabilidade de aplicar os vales em casas arrendadas e alargar o espectro. Parece-lhe uma solução viável? 

O Vale Eficiência também foi lançado no âmbito do PRR. Aliás, está identificado na Estratégia de combate à Pobreza Energética. Disseram que seriam atribuídos cem mil vales no valor de 1.300 €, mais IVA. Mas falhou redondamente. 

A ideia de um vale não funcionava logo à partida. Ninguém sabe bem como chegámos à ideia de cem mil vales. Politicamente alguém definiu, é certo, mas não com base em números de pessoas em pobreza energética, não com base em números de pessoas que recebem tarifa social, não com base na qualidade dos edifícios. Alguém definiu com base em nada. Cem mil é um número redondo e a abordagem foi essa. 

A secretaria de Estado tentou antecipar dinheiro às pessoas mais vulneráveis, mas 1.300 euros é muito pouco. Era muito pouco quando o programa foi lançado em outubro de 2021, e é ainda mais irrealista agora, com a guerra, com os custos dos materiais, da energia e da mão de obra. Mas este é um problema de fim de linha. 

Inicialmente, a ideia era distribuir 20 mil vales em quatro meses. Passou-se um ano e meio e não chegámos a esses 20 mil vales. As pessoas não sabem que isto existe. Não chega pôr-se num site. Quem tem acesso a isso? Este para mim é o principal problema: a comunicação. 

Tem de se dar uma promoção muito maior a este tipo de política, porque não é automático. E posso dar um exemplo muito bem-sucedido em Portugal: a Tarifa Social. Desde 2016 que a Tarifa Social é automática. Antigamente, as pessoas tinham de concorrer à tarifa. Chegavam com dezenas de papéis ao seu comercializador com uma carga burocrática gigantesca de papelada, isto já numa fase em que tinham conhecimento da tarifa. Os números médios eram de cerca de 80 mil famílias. Quando passou a automático passamos a 800 mil. Isto mostra claramente o desconhecimento que havia. Aqui aplica-se igual. 

A guerra acelerou a tendência para o aumento do investimento em energias renováveis e da eficiência energética? 

Sim, eu diria que absolutamente no caso da Europa. Não tenho dúvidas nenhumas, e Portugal foi a reboque. Ainda assim, Portugal já estava bem posicionado em relação às energias renováveis. É um dos países com mais incorporação de energias renováveis no mix energético, especialmente na produção de eletricidade. Já na crise climática que se fala há muito tempo não é o caso. 

Temos falado nos últimos cinco anos de forma mais assertiva, talvez. Mas é importante perceber que a crise climática não promoveu essa alteração imediata. Já a crise energética, sim, porque entrava diretamente no bolso de entidades maiores, como as grandes empresas, e na vulnerabilidade de determinados países europeus. Mas as coisas não podem ser vistas isoladamente. Quando estamos a pensar renovar um país inteiro nas próximas décadas, as pequenas e grandes empresas de construção e de renovação e de materiais vão crescer. Isto vai ajudar a economia.

Seria muito mais importante se o dinheiro que se gasta em coisas mais extravagantes, como pensar no hidrogénio a curto prazo, se aplicasse às pessoas e às suas famílias. Mas dar dinheiro aos agentes - que são as pessoas - é diferente de trabalhar com cinco empresas, dez empresas e grandes empresas. O benefício para a economia geral é outro, porque estamos a falar de empresas espalhadas pelo país. Falamos também de descriminação territorial. Há muitos benefícios a tirar da transição energética a partir de uma perspetiva mais descentralizada: renovação de edifícios, integração solar e equipamentos. 

“Na questão da pobreza energética estamos a falar de pessoas, não estamos a falar só de números. Falar de 600 mil pessoas, um milhão, dois milhões são números. Mas na verdade, transformar isso em experiências vividas é muito mais dramático."

Falamos diariamente do aumento de preços, da inflação e da crise energética. Ainda assim, os lucros das grandes empresas são evidentes. A EDP lucrou 679 milhões de euros em 2022, a Galp fechou o ano com um lucro histórico de 881 milhões de euros. 

É verdade, mas eu iria mais longe. Olhando para o caso internacional, saíram algumas notícias sobre os lucros da Shell Plc e das várias petrolíferas. As petrolíferas tiveram maiores lucros, se não os mais altos registados na história, num ano de crise energética à escala global. Isto é muito problemático, mesmo quando pensamos na ação climática. É urgente reduzir o consumo, é urgente reduzir as emissões. 

Olhando para a EDP, é certo que tem um histórico de aposta energias renováveis a nível internacional muito grande com a EDP Renováveis, com o crescimento do investimento em ótica e em energia solar nos Estados Unidos da América. A sua presença no mercado global é diferente do que é a Galp ou outras empresas de combustíveis fósseis. 

Também já vemos a Galp a apostar em painéis solares e empresas que trabalham em Portugal nesta área com outras alternativas. Mas tudo isto muito contaminado com greenwashing, umas mais que outras, mas não estão claramente a fazer o que podiam fazer. Os governos podem intervir, podem regulamentar certas e determinadas situações ou pôr mais ambição em termos de metas e restrições, objetivos específicos, promover mais energias renováveis. Claro que tem de ser a política europeia e depois a nacional. É isso que tem vindo a ser feito, mas a uma velocidade lentíssima. Recentemente saíram novas estatísticas da Agência Internacional de Energia que mostram que a oportunidade que se previa pós-Covid19 para começarmos a reduzir as emissões caiu totalmente por terra. Não serviu de nada.