Museólogo, Investigador no Centro de Estudos Transdisciplinares “Cultura, Espaço e Memória”, Universidade do Porto.

Não queremos uma homenagem encapotada a Salazar

A autarquia de Santa Comba Dão vai avançar com um museu sobre o Estado Novo na terra onde o ditador nasceu. Argumenta que é “absolutamente necessário” para realçar as “virtudes da democracia”, mas a democracia não precisa de uma homenagem encapotada ao líder de uma ditadura fascista que perseguiu, torturou e matou.

Ensaio
23 Março 2023

A Câmara Municipal de Santa Comba Dão decidiu avançar com o Centro Interpretativo e Museu do Estado Novo, instalado na antiga Escola-Cantina Salazar, no Vimieiro, de onde é natural o ditador António de Oliveira Salazar. A ideia não é nova. Por várias vezes foi tornada pública a intenção do município em criar um equipamento que, nas palavras do atual presidente da autarquia, Leonel Gouveia, é “absolutamente necessário” para “interpretar factos” e compreender “virtudes da democracia”. O autarca quer que o museu seja inaugurado no “final de maio”.

No auge do quadro das comemorações do 25 de Abril, os debates em torno das políticas da memória provam, mais uma vez, que são uma arena de um combate político sobre projetos coletivos de futuro.

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Arqueologia de uma insistência

Não é necessário recuar muitos anos. Foi em 2019, nas comemorações dos quarenta e cinco anos da Revolução dos Cravos, que surgiu a primeira notícia sobre o projeto. O debate público estava montado e os argumentos dos sectores mais à direita acompanharam a ideia da autarquia: não precisamos de falar das histórias das resistências para melhor compreender o Estado Novo. Ele explica-se a si mesmo, se tivermos a capacidade de apresentar tão somente os factos (já iremos ao problema dos “factos”). 

O projeto inicial não deixava margem para dúvidas. Estava enquadrado numa Rota das Figuras Históricas, promovido pela Associação de Desenvolvimento Local ADICES. A ideia sempre teve como base a homenagem ao ditador, o discurso público é que foi se moldando à medida que a pressão do debate político a isso obrigou. O próprio universo académico, em concreto o Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra, acabou por desistir da parceria com o município, depois de as críticas se avolumarem. Chegados a 2019, é o município de Santa Comba Dão quem procura financiamento para a ideia que, apesar de isolado, parece não se demover de homenagear a figura de Salazar.

Reafirmar a democracia não passa por um revivalismo pretensiosamente inocente que recupera antigas salas de aula do fascismo ou cantinas sociais onde a pobreza se fazia sentir. 

O município e os sectores mais à direita tentaram justificar o projeto com os argumentos mais estapafúrdios, mas existiu sempre uma pergunta à qual nunca se obteve resposta. Porquê ali? Porquê na terra natal do Ditador? Qual a importância histórica particular de Santa Comba Dão para o período do Fascismo em Portugal? O silêncio em torno da pergunta não esconde a verdadeira intenção: uma homenagem a quem ali nasceu.

A Assembleia da República condenou em boa hora a ideia, apesar das abstenções do PSD e do CDS na iniciativa apresentada na altura pelo PCP. As reações a esse chumbo político nas intenções do município fizeram ressurgir os argumentos do costume: o projeto é “absolutamente necessário” para “interpretar factos” e compreender “virtudes da democracia”, explicava de novo o presidente da autarquia, eleito pelo Partido Socialista. Subentende-se, destas palavras, que, por exemplo, o Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, ou ainda o projeto já conhecido para a instalação de um Museu Nacional sobre o tema na fortaleza de Peniche, não cumprem esses requisitos. O pensamento hegemónico está sempre a ensinar-nos: isenção é quando reproduzimos o senso comum, tudo o que seja dar voz às margens e aos subterrâneos é panfleto e comício político.

O lugar importa

A campa de Salazar no cemitério de Santa Comba Dão tem servido, ao longo dos anos, como palco de romarias de neo-fascistas, que prestam homenagem ao ditador e aos valores do Fascismo. Esse fenómeno que movimenta grupos de extrema-direita, ora das cidades de origem ora dos locais onde esses líderes estão sepultados, é uma realidade em Espanha ou Itália, onde as repercussões nas tensões sobre a memória coletiva desses períodos são latentes e influenciam diretamente as dinâmicas políticas contemporâneas. 

O Vale dos Caídos, depois de uma contenda entre o governo de Madrid e os descendentes diretos do ditador espanhol que terminou com a trasladação do corpo do ditador Franco para Madrid, continuou a ser palco de disputas da memória. A necessidade dos herdeiros políticos do franquismo de manter viva a ideia do Vale dos Caídos enquanto altar político-sagrado continua a ter repercussão em discursos de dirigentes e apoiantes de forças como o VOX ou até o PP.

O caso italiano também merece uma análise atenta e muita apreensão. Em outubro deste ano será inaugurado o Museu da República Social Italiana (nomenclatura oriunda do próprio regime fascista italiano), instalado na cidade de Salò, onde funcionou a sede do regime de Benito Mussolini. Os responsáveis pelo projeto de curadoria entendem que a exposição principal deve conter registos fotográficos dessa época, tal como propaganda fascista: posters, panfletos, bustos do ditador, equipamentos interativos que reproduzem os seus discursos, recortes de jornais e ainda a reprodução do hino fascista da República Social Italiana. 


Há outras formas de abordar o período do fascismo em Portugal: a transformação de antigas prisões políticas em espaços de liberdade e defesa dos valores dos Direitos Humanos e da Democracia. O Museu do Aljube ajuda-nos a não esquecer quem fomos e quem queremos ser.

Tudo em nome de uma melhor compreensão desse período “controverso da história”, segundo a equipa de curadoria. A linha de raciocínio cruza-se com a apresentada no caso português de Santa Comba Dão que, em nome da isenção e de uma melhor interpretação dos factos, reproduz-se toda a estética fascista em modo museu, funcionando como projeção de uma vontade envergonhada.

O lugar importa. O Museu do Aljube – Resistência e Liberdade fala-nos do Fascismo e de quem a ele resistiu. Reconstituiu uma antiga prisão política, conta estórias do cárcere, de tortura, de perseguição e de morte. Relata-nos o lado escondido da Guerra Colonial. Homenageia a Democracia e o povo que por ela lutou. Está neste momento a ser instalado no forte de Peniche (antiga prisão de alta segurança do Estado Novo) o Museu Nacional da Resistência e Liberdade. Não precisou de, no seu projeto de curadoria, recuperar as origens que relacionam Salazar com Santa Comba Dão para expor um discurso cientificamente criterioso sobre o período do Estado Novo.

O mesmo acontece com exemplos internacionais. O Museu da Memória e dos Direitos Humanos, no Chile, é um espaço concebido para dar visibilidade às violações dos direitos humanos cometidas pelo Estado chileno entre 1973 e 1990; para dignificar as vítimas e as suas famílias; e para estimular a reflexão e o debate sobre a importância do respeito e da tolerância, para que estes acontecimentos nunca se repitam. 

Em Buenos Aires, na Argentina, o Museu e o Parque de la Memoria - Monumento às Vítimas do Terrorismo de Estado, que, desde 1998, se apresenta como espaço público que se estende por catorze hectares, localizado ao longo da costa do Rio da Prata na Cidade de Buenos Aires, são outro exemplo de equipamentos que nos avivam a memória coletiva sobre um passado incómodo, sem precisar de enaltecer aspetos individuais e privados da vida dos seus ditadores.

Em termos comparativos, a dinâmica museológica e social conseguida no Museu do Aljube tem, de certa forma, paralelo com o Memorial da Resistência de São Paulo, instalado naquilo que foi o espaço escolhido para prisão no edifício do Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (DEOPS/SP). Apesar de não cumprir as funções apenas de cadeia, estava equipado com celas de alta segurança e salas de interrogatório. É lembrado pelos resistentes à Ditadura Militar como um dos lugares de maior tortura. Na viragem do século XX para o XXI, várias organizações antifascistas brasileiras, grupos de ex-presos políticos e coletivos em defesa dos Direitos Humanos uniram-se para  reivindicar aquele espaço como símbolo da vitória da Liberdade sobre o regime autoritário.

De novo, o lugar importa. Reafirmar a democracia não passa por um revivalismo pretensiosamente inocente que recupera antigas salas de aula do fascismo ou cantinas sociais onde a pobreza se fazia sentir, como se pretende em Santa Comba Dão. Pelo contrário, a transformação de antigas prisões políticas em espaços de liberdade e defesa dos valores dos Direitos Humanos e da Democracia são instrumentos capazes de não nos esquecermos quem fomos e quem queremos ser.

Os museus dos outros que faltam erguer

Sobre a renovada vontade do município de Santa Comba Dão, o Senhor Ministro da Cultura, Pedro Adão Silva, diz que não conhecia e que não acompanha. O foco não está na divisão dos poderes executivos entre o Estado Central e os municípios e, portanto, assumamos que possa existir, da parte do Governo, alguma contenção institucional a esse respeito. Mas não deve existir em nenhum momento, por um lado, a dificuldade em verbalizar o que representa a ideia e, por outro, a demora em dar corpo a mais equipamentos e soluções na área das políticas públicas da memória que provem que é possível e desejável fazer diferente. 


Cada omissão de tortura, de perseguição, de proibição de liberdades, de perseguição política corresponde a mais uma brecha para se permitir as homenagens a quem o regime democrático derrubou.

Pedro Adão Silva, ainda antes de ser Ministro da Cultura, já sabia de uma petição, com mais dezoito mil assinaturas, contra a ideia. E acompanhou a sua indignação com um artigo de opinião no qual escreveu: “O que torna imperioso que se multipliquem centros interpretativos: nos tribunais plenários, nas antigas prisões políticas, nas fábricas, nas faculdades onde a PIDE entrou ou nas escolas onde professores foram expulsos. Em todos os lugares menos na aldeia natal do ditador. A ideia é uma afronta à memória e, pior, adensa um espectro que paira sobre o futuro”. 

É preciso, além do projeto na fortaleza de Peniche, executar a resolução  153/2019 da Assembleia da República, a qual recomenda ao Governo a criação de um museu de memória da resistência ao fascismo no imóvel onde funcionou a delegação da ex-PIDE/DGS no Porto, enquadrando-o numa Rede Nacional de Museus da Resistência. O projeto, que já contou com uma Carta Aberta, parece ainda não contar com vontade governativa suficiente para conhecer a luz do dia. No caso da memória, tempo não é dinheiro, mas é esquecimento.

Não há espaço para isenções na defesa de Abril

O quadro das Comemorações do 50.º Aniversário da Revolução de 25 de abril de 1974 cria a falsa sensação de que o poder de Estado assumiu, reparou e incorporou a violência praticada durante o Estado Novo como memória oficial e marca genética do atual regime democrático. Antes pelo contrário, o discurso oficial sobre a herança difícil que o Portugal do século XX carrega continua mergulhado em contradições.

O discurso oficial mantém-se alicerçado em memórias desfiguradas sobre esse período, trabalhadas meticulosamente no sentido de permitir sempre uma mea culpa dos atuais atores políticos do arco da governação - e, agora, alargado à extrema-direita que chegou ao Parlamento. A tortura existiu, mas nunca como contam os resistentes. Os massacres nos territórios africanos são silêncios contemporâneos. 

No país imaginado dos brandos costumes, permite-se um jogo de sombras que apresenta a resistência antifascista em moldes que nunca incomodem as memórias fortes de um Estado que não enfrentou a violência histórica que exerceu sobre os povos português e dos territórios colonizados. São memórias fortes aquelas oficializadas pelo poder de Estado, mesmo que relativas à resistência antifascista. Enquanto as memórias fracas são as que contam as resistências por quem as fez e viveu, continuando subterrâneas. Não só se mantêm à margem da narrativa oficial sobre a ditadura como são manobradas em prol da mesma. É um processo de violência simbólica que incorpora à força, ao ponto de esmagar, tamanha é a força impressa no movimento.

A ascensão da extrema-direita na Europa e no mundo obriga qualquer democrata a reorientar estratégias políticas e concertar posições no campo das políticas da memória. A recuperação de uma imagética fascista por estas forças políticas é parte do seu programa político. É por isso que a suposta “isenção histórica” alicerçada em “factos” do projeto de Santa Comba Dão é terreno fértil para o transformar, não num centro interpretativo sobre o Estado Novo, mas num local de romaria de fascistas e adeptos da ideia de que “antigamente é que era bom”. Encaixa que nem uma luva nessa tentativa de harmonização da violência de Estado do Salazarismo com o reaparecimento de ultraconservadores na arena do debate político. 

Cada omissão de tortura, de perseguição, de proibição de liberdades, de perseguição política corresponde a mais uma brecha para se permitir as homenagens a quem o regime democrático derrubou. O país de Abril tem orgulho dos seus resistentes ao Fascismo. É sobre esses outros que os museus da memória se devem debruçar. Até porque museu em casa de alguém é sempre homenagem.